Artigo publicado em Médico News.
O microbioma e a sua relação com a evolução histórica da Medicina afirma-se como um tema de particular interesse dentro da classe médica. O Dr. Pedro Brogueira, médico especialista em doenças infeciosas, da Sociedade Portuguesa para a Inovação em Microbioma e Probióticos, escreve um artigo de opinião, onde contextualiza as mudanças de paradigma relacionadas com o microbioma.
A nossa relação com o mundo microbiano tem sido alvo de atenção ao longo de séculos. As múltiplas descobertas e a evolução tecnológica, sobretudo no último século e meio, produziram sucessivas mudanças de paradigma. Devemos aos postulados de Robert Koch o entendimento do papel dos microrganismos na doença humana.
Se, por um lado, as primeiras descobertas vieram do lado da Microbiologia e da Epidemiologia, onde podemos contar o trabalho notável de John Snow, assistiu-se a um modelo conceptual progressivamente mais centrado no microrganismo. A medicina experimental de Koch e Pasteur deu lugar à Bacteriologia Médica e, no início do século XX, Paul Ehrlich desenvolve o conceito de quimioterapia. A abordagem sistemática de Ehrlich levou à identificação de milhares de drogas, algumas das quais com efeito antimicrobiano.
A idade de ouro da era antibiótica, entre 1950 e 1970, consistiu na descoberta de todas as classes de antibióticos que utilizamos até aos dias de hoje. Por esta altura, o otimismo era crescente no que à luta contra as doenças infeciosas dizia respeito, difundindo-se a ideia de que a antibioterapia levaria à eliminação das bactérias patogénicas para o ser humano. Não poderia ser mais afastada da realidade…
De facto, não se tivessem obliterado os conceitos de “comunidade”, “cooperação”, “evolução” e “resistência”, o foco jamais seria colocado na eliminação. Prova disso é o surgimento de doenças emergentes provocadas por bactérias cuja patogenicidade é nova para o ser humano, além das estirpes multirresistentes fruto do uso irracional de antibióticos. O conceito que melhor traduz a influência de um ecossistema comum na relação bidirecional e multipolar com os microrganismos, é o de microbioma.
O termo microbiota diz respeito a uma comunidade de microrganismos num ambiente específico. Ao considerarmos o papel dos microrganismos, as interações entre as várias espécies e a sua função, estamos a falar de microbioma. Do ponto de vista conceptual, podemos definir o microbioma segundo duas perspetivas: a ecológica, isto é, a comunidade de espécies comensais e simbióticas que compartilham o nosso espaço corporal; e a genómica e inter-relacional, sendo o microbioma a soma dos microrganismos e dos seus elementos genéticos, considerando a sua função no organismo e as interações entre si. Fundamentalmente, o ser humano deve ser percecionado como um holobionte, isto é, um ecossistema mutualístico composto pelos três domínios da vida – Bacteria, Archae e Eukaryota.
Esta visão rompe com a conceção tradicional e unidirecional que considera o agente microbiano como um invasor que deve ser alvo de eliminação, nomeadamente através do uso de antibióticos, ou “bala mágica”, como definido por Ehrlich. De facto, entre os diversos fatores promotores de disbiose, a utilização de antibióticos é o mais determinante.
Hoje é claro que mesmo a utilização racional de antibióticos promove consequências a longo prazo relacionadas com a destruição das bactérias necessárias à manutenção da homeostasia. A insuficiência do microbioma induzida pelos antibióticos resulta na perda das funções metabólicas e de sinalização promovidas pelas bactérias que constituem a microbiota. Este desequilíbrio está na génese de múltiplas doenças inflamatórias e influencia de forma impactante processos fisiológicos diversos como a percepção da dor, a regulação do apetite, a fertilidade e a amamentação, entre outros que têm sido alvo de estudos recentes.
O estudo do microbioma, a nível da sua composição e papel, e a compreensão dos efeitos da disbiose na disrupção dos processos fisiológicos e do seu impacto na saúde global, são áreas de grande interesse e intensa investigação atualmente.